Uma viagem com passagem de ida, mas sem uma garantia de volta. A insegurança nas estradas brasileiras com a ação de quadrilhas especializadas no roubo de cargas tem tirado o sono de autoridades policiais, motoristas e empresários do setor do transporte, que não tem a garantia de que na próxima curva da estrada a insegurança não esteja travestida em uma abordagem de quadrilhas altamente especializadas.
Mesmo ainda sem números fechados para 2012, o que deve ocorrer ainda no mês de agosto, a assessoria de segurança da NTC&Logística prevê um aumento em número de incidentes e valores roubados.
Em 2011, no último balanço divulgado pela entidade, foram registrados 13 mil casos com perdas de R$ 920 milhões. Em ocorrências, o número é o segundo maior da série, perdendo apenas para 2009, com 13,35 mil. No entanto, financeiramente, o volume é o maior já registrado. Se confirmada a tendência, o assessor de segurança da NTC&Logística, coronel Paulo Roberto de Souza, diz que 2012 será um ano de recordes no roubo de cargas no País. “O cenário é crescente e os números apontam para esta alta. Isto é uma realidade. Na região Sul houve um pequeno aumento de 258 casos em 2011 para 299 em 2012. Sul e Sudeste respondem por quase 90% do roubo de cargas e nas duas houve aumento”, alerta.
Entre os motivos apontados pelo especialista em segurança está a impunidade das leis penais brasileiras. Cita legislação sancionada em 2011, que inclui entre os crimes de menor potencial ofensivo, com pena de até quatro anos de reclusão, a receptação de cargas. Com isso, mesmo preso em flagrante, o criminoso é indiciado, paga a fiança e responde em liberdade. “Há uma fragilidade das leis. Hoje um marginal que se propõe a cometer o roubo de cargas ou outros delitos, sabe que a legislação é muito branda na parte do estabelecimento de penas, como é branda também no relaxamento de prisões. O nosso sistema não cria uma coação onde o elemento possa olhar para frente e ver que será punido. O criminoso entra com a perspectiva de que vai arriscar com a chance de não ser descoberto e na pior das hipóteses, se a casa cair, a pena é branda e não fica preso por muito tempo”, salienta.
Além da legislação penal, o assessor da NTC&Logística atribui ao momento econômico do País o aumento do roubo de cargas. De acordo com ele, a condição econômica desfavorável das camadas mais baixas faz com que muitos vejam na prática de irregularidades, no crime, uma forma de adquirir bens de um jeito mais fácil. “Essa fragilidade legal leva a existência da receptação. A pessoa vê nesta atividade uma forma de ganhar dinheiro, de se dar bem. A violência cresceu em todos os tipos de modais, os bandidos estão mais atuantes. Temos como fundo disso uma possível carência econômica. É uma condição social que se estabeleceu”, avalia.
Um dos reflexos, conforme o especialista em logística e professor da Universidade McKenzie, de Campinas (SP), Mauro Schlüter, é o aumento no preço dos seguros de cargas. “O seguro para roubo de carga é facultativo no Brasil. Mas transportadora séria sabe que negociar o transporte exige seguro. Sob o ponto de vista de operação, se o seguro não estiver em vigor, se roubarem a carga não existe o reembolso.” Schlüter ressalta que devido à alta, as empresas têm tomado medidas de prevenção para baratear os custos com a insegurança nas estradas. “O que tem acontecido é uma troca de uma ótica reativa para uma troca proativa. A reativa é aquela que se faz o seguro e se a carga for roubada o seguro cobre. De certa forma o seguro alimenta o próprio crime, pois o segurado vai para a posição de conforto.”
Como o custo do seguro está chegando a um patamar quase que inviável, as transportadoras têm trocado o custo do seguro por consultorias de segurança para evitar o roubo de carga. “Isto implica em escolher roteiros que fogem daqueles que são alvos dos ladrões, fazendo uma rota mais longa em nome da segurança da carga”.
O especialista e o assessor de segurança concordam que um dos principais problema do roubo de cargas está no receptador da mercadoria. “A carga só é roubada se ela tem demanda, quando já está tudo armado. Existe um mercado estruturado para receber o um objeto de roubo”, reforça Schlüter.
Souza explica que grande parte dos receptadores são comerciantes do ramo que cometem este tipo de crime por ganância, por necessidade e desejo de ganhar mais dinheiro. “O receptador mistura os produtos roubados com produtos legais e vende, até com promoções. Às vezes quem faz o transporte desconfia que tenha um indício de irregularidade quando é oferecido um produto legalizado ao comerciante que nega a mercadoria, alegando que o estoque está bom. O fabricante não vendeu o produto para o comerciante, e como ele tem no estoque?”, indaga o assessor da NTC&Logística.
Quanto ao perfil das quadrilhas, Souza esclarece que existem diferentes níveis de especialização. Mas a regra geral é que, além do receptador, existe o líder, que planeja a ação, os executores, que fazem a abordagem, e um elo entre estas duas pontas. “Os executores geralmente não conhecem todo o planejamento. Entre esta ponta, que é o nível mais baixo e que faz a ação de abordagem do veículo, e as lideranças da quadrilha, muitas vezes as pessoas nem se conhecem. Tem uma pessoa no meio que é o captador destas pessoas, que mantém esta distância até por segurança. Isso se chama compartimentação. Quando se põe a mão em um marginal destes mais simples, ele não sabe quem é o chefe da quadrilha.”
Quadrilhas especializadas burlam rastreadores para realizar assaltos
No Estado, segundo o consultor de segurança do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística do Rio Grande do Sul (Setcergs), coronel João Carlos Trindade, nos últimos cinco anos a média é de 300 roubos por ano. No entanto o prejuízo financeiro tem aumentado, passando de R$ 90 milhões em 2011 para R$ 110 milhões em 2012. O especialista afirma que, se o número de incidências for mantido, o valor pode chegar a R$ 130 milhões em 2013. “Isto tem um impacto forte na economia, inclusive, em última instância, quem paga essa conta é o consumidor.”
Um caminhão carregado que é assaltado pode significar uma perda de até R$ 1 milhão, segundo Trindade. “Este valor, se calcularmos com uma hipótese de assalto a uma farmácia, por exemplo, com roubo de R$ 600,00 em média, teriam que ter 1,6 mil casos para ter o mesmo impacto que apenas um caminhão tem.” Conforme Trindade, entre os registros encontrados no Rio Grande do Sul, o maior ainda é o de furto e roubo de pertences dos motoristas, com 28%, seguido de cargas e produtos diversos (14%), eletrodomésticos (9%), fumo (8%), alimentos (7,5%), medicamentos (6,5%) e bebidas (4%).
Produtos químicos e materiais de construção têm tido crescimento nos últimos anos, informa o consultor do Setcergs. Ele salienta que entre os locais preferidos pelos assaltantes estão o trecho entre Porto Alegre e Novo Hamburgo e parte da BR-386 até Lajeado e Montenegro. O diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Guilherme Wondracek, acrescenta também a BR-290 como um dos alvos preferenciais dos criminosos. Lembra também do crescimento do assalto a depósitos e transportadoras. “Temos registrado um aumento a roubo a depósitos e lojas. A preferência é por materiais eletrônicos e de informática. As transportadoras são visadas também, pois ao invés de pegar uma carga, os assaltantes conseguem os produtos em maior quantidade”, explica.
Mesmo com o aumento das tecnologias para evitar o roubo, os especialistas afirmam que as quadrilhas especializadas conseguem burlar rastreadores e efetuar os assaltos. Segundo eles, os caminhoneiros e transportadores devem tomar uma série de cuidados para não se tornarem vítimas do crime. “As abordagens são das mais variadas, os bandidos colocam na pista pregos, troncos, falsas blitz policiais, caronas, simulação de pane de veículo e de acidentes, tudo serve de isca. Tem que ter muito cuidado na beira da rodovia. É preciso também fazer uma boa seleção de motorista, evitar que o mesmo tenha relação com grupos de delinquentes”, reforça o coronel Trindade.
Wondracek lembra também que o ideal é que as viagens sejam feitas durante o dia. “O policiamento na estrada é menor do que nas cidades, principalmente à noite. Por isso as quadrilhas procuram agir durante a madrugada quando o policiamento é reduzido. Uma coisa primordial é nunca parar na estrada, parar só em postos de gasolina e da polícia rodoviária. O importante é evitar paradas desnecessárias.” O delegado admite, porém, que às vezes o mercado impede que as viagens sejam feitas durante o dia devido aos prazos de entrega das mercadorias. “Alguns transportadores optaram trabalhar apenas durante o dia, mesmo perdendo terreno no mercado, mas o prejuízo é menor do que os roubos que já tiveram”, ressalta o delegado Wondracek.
O drama de quem vive na boleia do caminhão
Principais vítimas do roubo de cargas, os caminhoneiros contam histórias de medo e insegurança ao rodar pelas estradas brasileiras. O caminhoneiro gaúcho Jaime Boff estava levando uma carga de minério para fazer adubo pelas rodovias de Minas Gerais, juntamente com o filho, quando foi abordado por dois veículos no início da noite. “Estávamos no trevo de entrada de uma cidade e na frente tinha uma carreta andando devagar, tive que reduzir e colocar o caminhão em segunda. Quando vi tinha um de cada lado. Nos levaram por cerca de 30 quilômetros e depois ficamos no mato com um deles nos vigiando. Dali o caminhão foi embora e ficamos até uma e meia da manhã, quando voltaram e chamaram o que ficou com a gente”, lembra.
Depois de andar mais de 10 quilômetros pela estrada pedindo ajuda e não tendo sucesso, um ônibus parou e levou a mensagem de socorro de Boff e do filho. A polícia chegou e fez o registro do ocorrido. O caminhoneiro conta que, pelo fato de ter sido assaltado em uma rodovia federal, a responsabilidade era da Polícia Rodoviária Federal. Logo começaria uma peregrinação entre delegacias que tirou Boff do sério. “Chegamos na delegacia e a polícia disse que teríamos que registrar na federal, pois fomos assaltados em uma BR.” Boff e o filho tentaram parar alguns veículos na estrada para pegar uma carona, o que só conseguiram depois de alguns insucessos. “A polícia que tinha que nos buscar estava dormindo. O que mais doeu é que tivemos que ir para a civil e chegamos na delegacia às 7h. O que estava de plantão mandou sentar e descansar. E foram nos atender era quase 11h. Quase perdi a paciência, mas tive que aguentar”, salienta.
Além do prejuízo financeiro, pois o caminhão estava financiado, e com o valor do seguro teve que quitar as prestações e comprar um veículo mais antigo, Boff também teve um prejuízo sério de saúde. “Tive um derrame e perdi uma vista. O médico disse que foi do estresse. Consegui recuperar a vista mas tive sequelas. Foi o estresse que passei nesse tempo do roubo do caminhão”.
Na Serra Gaúcha, o caminhoneiro Itacir Ceconello andava pela estrada de São Vendelino com uma carga de tinta industrial. Na subida, em marcha lenta, foi abordado por dois homens armados dentro de outro veículo. Naquele dia, excepcionalmente, ele havia mudado o trajeto. “Geralmente subia a Serra por Galópolis, mas aquele dia decidi ir por São Vendelino. Os bandidos entraram um por cada lado. O que entrou pelo lado direito quebrou o vidro da janela com uma coronhada. Logo eles me amarraram com cadarço de sapato. Não podia olhar para eles e nem trocar de marcha para quebrar a caixa de câmbio que eles me matariam”, relata.
Na descida da Serra foi abandonado em Santo Antônio da Patrulha, amarrado a uma cerca próxima à entrada de Capivari do Sul, onde conseguiu se soltar meia hora depois. Ceconello até hoje busca o veículo roubado. “Não consegui reaver meu caminhão até hoje. Tinha o veículo há 30 anos e trabalhava todo os dias”, lamenta.
O presidente da Federação dos Caminhoneiros Autônomos do Rio Grande do Sul, Eder Dal’Lago, atribui a insegurança à falta de ação dos governos federal e estaduais. “A gente luta, se reúne com o governo e a situação continua pior. O governo sabe quem rouba, quem compra a carga e não faz nada. O caminhoneiro é um herói. Ele não sabe se volta, não sabe se perde o patrimônio, e a família fica rezando em casa.” Dal’Lago também questiona a aplicação da nova lei do descanso do motorista e a falta de infraestrutura para os caminhoneiros poderem repousar. “Tive uma reclamação esses dias de que um motorista foi obrigado a parar em Vacaria. Como ele alegou que não tinha um local seguro para ficar mandaram que ele encostasse em qualquer lugar na cidade e dormisse por ali, ficando mais exposto aos bandidos”.
Fonte: Jornal do Comércio
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