Fazer mais de 1,5 mil quilômetros em menos de um dia foi o tema que
tornou o filme Corrida contra o Destino, da década de 1970, um cult entre os
cinéfilos. A estratégia para tentar superar o desafio, adotada pelo personagem
Kowalski, motorista de um Dodge Challenger, é se entupir de anfetaminas. Apesar
de ser uma obra de ficção, situações parecidas são verificadas nas estradas
brasileiras constantemente. No cenário nacional, essa prática é frequentemente
vinculada aos caminhoneiros, e as anfetaminas são mais conhecidas pelo seu
popular apelido: rebite.
São inúmeras as dificuldades para
combater o uso dessa droga, entre as quais estão a limitação do número de
policiais rodoviários e a dificuldade para confirmar o consumo (não há um
equipamento similar ao bafômetro para detectar o uso de anfetaminas). As apreensões
normalmente são feitas ao flagrar o motorista transgressor com as cápsulas nas
cartelas.
De acordo com a assessoria de
imprensa da Polícia Rodoviária Federal (PRF), o portador dos rebites responderá
à Justiça conforme for o “enquadramento” dado pelo delegado, que pode ser
análogo ao tráfico de drogas e entorpecentes ou contrabando. Dentro dos
levantamentos realizados pela PRF, não há uma estatística sobre as apreensões
de rebites apenas, mas consta o item anfetaminas e barbitúricos (sedativos) – as
informações apontam um total de 118.107 unidades apreendidas no ano passado
contra 274.250 em 2011.
Um dos estados que decidiu
enfrentar esse problema foi Santa Catarina. O inspetor e chefe do Núcleo de
Comunicação Social da Polícia Rodoviária Federal catarinense, Luiz Graziano,
afirma que a região registra um elevado número de acidentes, muitos deles
envolvendo veículos de cargas. “Vários incidentes são causados, ainda que
muitas vezes não se possa comprovar, porque os motoristas acabam dirigindo por
várias horas sob o efeito de cocaína e de anfetamina”, lamenta Graziano.
Nesse contexto, a PRF catarinense
decidiu intensificar a fiscalização. “Estamos fazendo isso, dentro das nossas
limitações”, diz Graziano. Segundo o inspetor, não se consegue “pegar mais” por
falta de efetivo. Mas o policial atesta que o uso de rebite é bastante comum
por parte dos condutores de veículos de carga. Uma prova disso foi dada na
manhã da última quarta-feira de setembro, quando a PRF de Itapema flagrou dois
caminhoneiros com posse de rebites e apreendeu 69 comprimidos.
A primeira abordagem ocorreu às
11h20min e foram confiscados 51 comprimidos de um motorista de 37 anos que
conduzia um VW/24.250 CLC, de Santa Catarina. Aproximadamente 20 minutos
depois, foi fiscalizado um Ford/Cargo 2428, do Paraná, e retidos mais 18
comprimidos com um caminhoneiro de 32 anos.
Graziano informa que o número de
apreensões envolvendo anfetaminas, barbitúricos e ecstasy em Santa Catarina,
até outubro, superou 3 mil, o que abrange cerca de 600 motoristas. Ele explica
que o senso comum indica que o caminhoneiro autônomo abusa mais da droga, pois
tem que fazer mais viagens para pagar a prestação do caminhão, o que não ocorre
com o empregado de transportadoras. Contudo, Graziano diz que, na prática, isso
não ocorre. Isso porque o empregado ganha pela sua produção, sujeitando-se a
trabalhar mais para melhorar a remuneração. “Todo mundo fala que o autônomo é o
que mais usa, mas temos flagrado muitos motoristas de empresas, empresas
grandes, fazendo uso dos rebites.”
O ideal para o policial seria que
pessoas expostas publicamente, como é o caso dos caminhoneiros responsáveis por
um veículo de várias toneladas, tivessem que realizar testes para verificar se
ingeriram drogas para dirigir. Graziano acrescenta que alguns motoristas de
ônibus também consomem rebites e estão transportando dezenas de vidas. “A
responsabilidade começa lá na família, passa pela empresa e a polícia tenta
fazer a sua parte, mas a gente não consegue flagrar todo mundo”, enfatiza.
Se fosse cumprida, a nova lei
evitaria consumo dos motoristas
A recente norma que disciplina a
carga horária dos motoristas profissionais (Lei nº 12.619/12), impondo limites
ao tempo de direção, é uma das ferramentas que podem contribuir para
desacelerar o consumo de rebites nas rodovias brasileiras. A lógica é simples:
se o caminhoneiro for obrigado a parar e descansar, não há razão para utilizar
uma substância capaz de deixá-lo por mais tempo em vigília.
No entanto, a norma precisa ser
cumprida para que seus efeitos sejam percebidos. O presidente do Sindicato dos
Empregados no Transporte Rodoviário de Carga Seca do Estado do Rio Grande do
Sul (Sinecarga), Paulo Barck, admite que o uso do rebite ainda é uma prática
muito adotada entre os motoristas. “Mesmo com o advento da lei 12.619, poucas
empresas estão adotando um controle de jornada mais rígido”, alerta o
dirigente. E, conforme Barck, na questão dos autônomos, “não dá nem para falar,
estão direto, sem cumprir o limite de direção”. O presidente pondera que isso ocorre
devido ao autônomo ser o seu próprio patrão.
Barck afirma que certamente a
maioria dos acidentes que envolvem veículos de carga é causada pelo excesso de
jornada e pelo cansaço dos motoristas. “As pessoas não se conscientizaram de
que não é só o ganhar mais”, lamenta o presidente do Sinecarga. Ele destaca que
muitos empregados estão reclamando da nova lei, pois não querem permanecer em
determinados locais descansando.
Para o sindicalista, o emprego de
anfetaminas é causado pela pressão de horários e por lucros maiores. Ele revela
que os motoristas adquirem os rebites, muitas vezes, em tendas de frutas e
postos de combustíveis localizados à beira das rodovias. Normalmente, o usuário
mistura a droga com álcool, Coca-Cola, energético ou café para potencializar os
efeitos. Barck acredita que o nome rebite deriva do verbo arrebitar, tornar-se
ativo.
“O problema do rebite é o
seguinte: você aguenta dois dias e duas noites, depois você apaga, vai dormir
12 horas ou mais, imagina isso acontecendo no meio de uma rodovia”, alerta. O
dirigente enfatiza também que as baladas seguras (blitze que checam se os
motoristas beberam álcool antes de conduzir o veículo) existem nas grandes
metrópoles, dentro das cidades, mas são inexistentes nas estradas.
Controle permite detectar os
abusos
Qualificar e educar os motoristas
são maneiras de tentar impedir que esses profissionais acabem empregando
rebites em suas viagens. O diretor do Serviço Social do Transporte (Sest) e do
Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), Carlos Becker
Berwanger, acredita que o condutor profissional tem hoje uma visão diferente,
principalmente os que participam de palestras e cursos de empreendedorismo. O
dirigente informa que os cursos de qualificação do Sest e Senat abrangem
conversas quanto ao consumo de álcool, de fumo e de outras drogas. Assim como
são feitas sugestões quanto à qualidade de vida, postura ao volante e atividade
física. “Há inúmeros temas quanto à saúde do motorista”, salienta Berwanger. O
cuidado das empresas contratantes também é outra forma de coibir a utilização
de anfetaminas.
O coordenador de Logística da
Braskem Unib-RS, João Batista Dias, admite que não há como saber se um
motorista fez uso dos rebites. Contudo, há atitudes que podem ser tomadas para
diminuir as chances de o profissional adotar essa prática. Ele destaca que a
Braskem não permite que os caminhões das transportadoras contratadas movimentem
as suas cargas durante a maior parte do período da noite, entre 22h e 6h. Com
isso, reduz a possibilidade de ocorrer uma das dificuldades que leva às
anfetaminas: o sono. Todos os veículos são rastreados e, ao final do mês, é
apresentado um relatório, por caminhão e motorista, apontando se houve
transgressões aos horários impostos.
Dias acrescenta que a companhia
também adota uma série de programas de segurança. As transportadoras são
certificadas pelo Sistema de Avaliação de Segurança, Saúde, Meio Ambiente e
Qualidade (Sassmaq), da Abiquim, voltado à movimentação de produtos perigosos,
e pelo programa Transportadora da Vida da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga e
do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado do Rio
Grande do Sul (Setcergs). Esse projeto prevê visitas de diagnóstico para
conhecer a realidade da empresa e os principais agentes em cada organização.
Também acontecem visitas técnicas, que oportunizam trocas de experiências entre
as transportadoras. No fim de cada ano, o programa Transportadora da Vida
certifica as companhias que investem na segurança e no desenvolvimento do seu capital
humano e social.
De acordo com Dias, a atenção no
transporte de químicos é essencial. Isso por se tratarem de produtos
inflamáveis ou tóxicos como, por exemplo, solventes. A Braskem, na sua operação
com produtos perigosos no Brasil, efetua diariamente em torno de 250
carregamentos. “Perder a carga não é o problema, o problema é o que a carga
pode causar”, diz o dirigente.
Psicoativos causam vício e outras
doenças
Além dos riscos de acidentes nas
estradas, o consumo de anfetaminas pode induzir o indivíduo ao vício. O alerta
é feito pelo psiquiatra e coordenador do ambulatório de dependência química do
Hospital São Lucas da Pucrs, Pedro Eugênio Ferreira. O também professor do
Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Pucrs detalha que o usuário
desenvolve tolerância à substância, levando a um consumo de doses cada vez mais
elevadas para afastar o sono e manter o estado de alerta na direção. Outros
malefícios são os efeitos psíquicos, podendo implicar psicose, mania de
perseguição, agressividade e provocar alucinações.
Ferreira confirma que,
frequentemente, o rebite é misturado com álcool. “O álcool aumenta a toxidade,
entretanto, também intensifica o tempo de efeito psicoestimulante das
anfetaminas”, explica o psiquiatra. A droga pode causar taquicardia, arritmia,
pressão alta e acarretar isquemias de artérias cerebrais, gerando AVCs,
provocar infarto do miocárdio, desmaios, convulsões e até mesmo a morte.
O médico ressalta que,
normalmente, o uso dos rebites tem como objetivos acabar com o sono, o cansaço
e manter o motorista alerta. Aparentemente, é uma coisa cativante, pois o
sujeito produz mais e se cansa menos, porém, o usuário não sabe que isso é
somente no início e que depois ele desenvolverá os problemas. “Imagina alguém
tendo uma convulsão dirigindo um caminhão, um veículo pesado”, alerta o médico.
Ele acrescenta uma preocupante indagação a esse cenário: quantos motoristas
podem ter sofrido um estado de mal epilético induzido por rebites, e provocado
acidentes?
Como não é praxe realizar exames
aprofundados para verificar o cérebro e o coração do condutor falecido, muitas
causas de acidentes podem ter sido atribuídas, equivocadamente, a distrações ou
imprudências.
Ferreira esclarece que,
usualmente, pessoas que são dependentes de substâncias psicoativas, como os
rebites, só procuram ajuda quando estão “no fundo do poço”. Isso ocorre em caso
de um acidente, quando o tóxico é detectado em algum exame ou quando o
indivíduo é apanhado em uma barreira policial. Outro fator que leva à procura do
auxílio são os problemas de saúde, como isquemias cardíacas, convulsões e
alucinações.
O psiquiatra diz que é possível
perceber se alguém tomou rebite pela irritabilidade. O usuário também entra em
um estado de alerta inicial e, depois, cai em uma sonolência profunda. Nota-se
ainda alteração do juízo crítico, ficando imprudente e impulsivo, podendo
causar brigas no trânsito. Ferreira reitera que essas drogas são extremamente
perigosas para a saúde física e mental. O médico defende que é preciso haver uma
fiscalização mais eficaz nas rodovias e que sejam verificados sinais de
intoxicação por essas substâncias, além do álcool.
Fonte: Jornal do Comércio
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