terça-feira, 23 de abril de 2013

LEI DOS CAMINHONEIROS FICA SÓ NO PAPEL E ELEVA CUSTO DO AGRONEGÓCIO




A Lei dos Caminhoneiros, que determina paradas e regras para melhorar a qualidade de vida destes profissionais, ainda é um faz de conta no Brasil. Em vigor desde 15 de março, ela não melhorou a vida dos motoristas, elevou os fretes e ainda causa muita confusão. O Congresso já prepara uma revisão, mas há situações de desrespeito que fogem à própria lei. Esta é a realidade que a equipe do GLOBO constatou ao percorrer 2.450 quilômetros entre Lucas do Rio Verde (MT) e Paranaguá (PR), a principal rota da soja, como mostra o segundo dia da série “Celeiro em Xeque”.
A situação mais grave, segundo os próprios caminhoneiros, é a falta de locais adequados para parada nas estradas. Em grande parte do Brasil, simplesmente inexistem locais para banho, refeição ou para dormir com higiene e segurança. E nas rodovias onde há áreas para este fim o espaço é insuficiente para o crescente número de caminhões. Os motoristas passam ainda por uma espécie de seleção e, por vezes, são impedidos de descansar por ordem dos donos dos postos de gasolina.
— Está aumentando o número de postos que expulsam caminhoneiros. A gente chega, estaciona e logo vem um segurança perguntando o que a gente vai fazer. Quando a gente fala que vai tomar banho, dormir um pouco no próprio caminhão, eles falam para a gente sair. Dizem que faz oito meses, um ano que a gente não abastece ali e que o espaço é só para quem é cliente frequente. É um absurdo — afirma o motorista Valdecir dos Santos.
Falta de assistência, apesar de pedágio
Ele conta que, além de humilhante, isso coloca em risco a vida dos caminhoneiros, que dirigem com sono ou têm de parar em acostamentos, sem a menor segurança:— O pior é que isso acontece até nas grandes estradas, com pedágio. Muitas vezes pagamos mais de R$ 100 numa única praça de pedágio e não temos assistência alguma — diz Santos.
Daniel Rodrigues de Oliveira, caminhoneiro de Toledo (PR), confirma o abuso. Ele conta que, em alguns casos, os seguranças dos postos chegam a ser enérgicos:— Isso é um desrespeito. O posto não é uma loja que pode escolher clientes. Qual a diferença entre os caminhoneiros? Talvez eu não tenha abastecido lá ultimamente, mas já abasteci um dia.
O problema surpreendeu o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), que preside no Congresso uma comissão para alterar a lei. Ele afirmou que pretende tratar desta questão na reforma da lei.
— Os postos nas beiras das estradas são concessões públicas, não podem escolher quem pode descansar. Vamos tentar criar uma regra para obrigar as concessionárias de rodovias a criarem locais de descanso público — afirmou o deputado, que espera enviar o novo projeto de lei para votação ainda em abril.
Para Amador Trindade Filho, que deu carona para a equipe do GLOBO, a profissão ainda é muito desrespeitada:
— Às vezes, parece que temos algum tipo de doença, as pessoas não tratam os caminhoneiros com respeito. Trabalho pesado para dar educação para os meus filhos para que eles não sigam a minha profissão, apesar de gostar do que faço, por me permitir conhecer todo o Brasil.
A Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam) reconhece que a lei precisa de muitas mudanças. O principal pedido coincide com a vontade dos transportadores e usuários de serviços de transporte: redução do período de descanso diário obrigatório, de 11 para seis ou oito horas, e maior flexibilidade nas paradas. Algumas empresas, para se adequarem à lei, adotaram o procedimento da parada remota, quando o motor do caminhão desliga automaticamente após certo tempo rodando na estrada.
— Há essa situação de parada remota do caminhão, que não faz o menor sentido. O caminhão desliga quando o caminhoneiro está há 50 quilômetros de casa, por exemplo. E aí ele tem de ficar 11 horas descansando.
Na avaliação do senador Clésio Andrade (PMDB-MG), presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o próprio caminhoneiro não está sendo beneficiado pela lei. Para ele, é necessário aperfeiçoar a legislação. Glauber Silveira, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), frisa que o governo não preparou o país para a implementação da lei:
— Tudo está sendo repercutido no frete.
Independentemente das mudanças na lei, especialistas indicam que o Brasil precisa melhorar o controle de sua frota, de cerca de três milhões de caminhões. Gustavo Coelho, diretor comercial da Sascar (empresa que oferece soluções de logística) acredita que, com as novas tecnologias, pode haver ganhos de custos, minimizando eventuais aumentos nos gastos com a Lei dos Caminhoneiros:— Grande parte do problema pode ser resolvido com soluções modernas de monitoramento e gestão. O país perde R$ 2 bi por ano com roubo de carga e outros R$ 10 bilhões com acidentes.
No vale tudo das estradas, acidentes e desperdícios
Para o paranense Amador Trindade Filho, seu trabalho sempre começa ao anoitecer. Mais que uma preferência pessoal, este caminhoneiro com 12 anos de estrada opta pela noite para o início da jornada de 2.450 quilômetros de Lucas do Rio Verde (MT) a Paranaguá (PR) por um motivo simples: fugir do caos das estradas que, durante o dia, ficam entupidas de caminhões como o dele, também levando a soja ao porto. As viagens são mais rápidas, mas o risco é sempre maior: em todas presenciou pelo menos um acidente nas rodovias.
— Saindo à noite ganho quatro, cinco horas, pois muitos caminhoneiros param para dormir e a estrada fica mais livre. De dia não há espaço para todos, há filas. À noite a viagem rende mais — disse Trindade.
Ele escolheu a profissão para ganhar cerca de R$ 4 mil por mês, o dobro do recebido por motoristas das cidades.
Trindade poderia viajar sob a luz do sol e reduzir em 20% os três dias que gasta no trajeto, se as estradas fossem bem conservadas, com acostamento e até duplicadas. Mas o que ocorre é o contrário: para passar pelos 20 quilômetros do Anel Viário de Cuiabá, ele gasta três horas na estrada esburacada. Com acidentes, esse tempo chega a incríveis nove horas. Apesar de ser um contorno de capital, a situação piorou muito com o jogo de empurra entre governos. Agora, diz o estado do Mato Grosso, a solução virá. E, para ser mais rápido, usará o sistema de licitação especial para a Copa. A promessa é que a estrada fique melhor no fim de 2014.
Estradas do MT matam um ‘Boeing’ por ano
Essa situação, reclamação recorrente de diversos caminhoneiros, resulta em acidentes e mortes. Trindade conta que nunca fez uma viagem sem ver um caminhão capotado. No ano passado, foram 278 mortes no estado, o equivalente a um Boeing lotado. Nos primeiros meses de 2013, já são 73 vítimas fatais, 20 delas, caminhoneiros. Ele não perde apenas tempo e corre riscos: também perde dinheiro. Os transportadores lembram que 15% do frete da soja vão para pneus e manutenção. Se a estrada fosse boa, esse percentual seria de apenas 3%, média mundial do setor.
Com a infraestrutura precária, o Brasil perde, apenas com milho e soja, R$ 8 bilhões por ano, segundo estudos da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) e de especialistas em logística — cerca de R$ 6,6 bilhões com a soja e R$ 1,4 bilhão com o milho. Esse prejuízo equivale a 13% do montante exportado com os dois produtos em 2012. Isso reduz a competitividade das duas lavouras, que representarão 86% da safra recorde de 184 milhões de toneladas de grãos do país, prevista para este ano.
— O agronegócio, apesar de fundamental para o saldo comercial brasileiro, não é prioridade para o governo. Com estes problemas de transporte perdemos competitividade e, ao mesmo tempo, temos alimentos caros e pessoas que ainda passam fome no país — afirma Glauber Silveira, presidente da Aprosoja-Brasil.
Tal prejuízo está ligado diretamente à escolha dos caminhões como principal meio de transporte de longa distância. Percorrer as estradas dos quatro estados que estão no caminho do campo ao porto deixa evidente esse erro. Em muitos trechos, caminhões, cada vez maiores — já há veículos de nove eixos que levam 50 toneladas de soja — andam em filas que parecem trens sobre o asfalto.
No fim da viagem, novos problemas. Dessa vez, nos portos. A falta de investimento e a burocracia levam a cancelamentos de contratos e desperdícios com esperas e ineficiências.
— Há duas medidas a curto prazo que podem atenuar o caos logístico. Uma delas é que os portos funcionem 24 horas. A outra é a construção de armazéns. Eles podem ficar prontos em seis a oito meses e permitiriam que os produtores reduzissem a quantidade de soja vendida antecipadamente. Com a venda antecipada, o produtor põe na estrada o grão assim que colhe, aumentando o congestionamento e tornando os caminhões, na prática, silos sobre rodas — afirma Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
Propina já entra no orçamento do frete
Semana passada, o governo federal determinou que os portos de Santos, Rio, Vitória, Suape, Paranaguá, Rio Grande, Itajaí e Fortaleza comecem a funcionar ininterruptamente. Mas outros problemas persistem. Não é incomum navios ficarem dias a fio esperando um local para atracar nos terminais brasileiros:
— Os problemas estão nas estradas, armazéns, ferrovias, hidrovias, manutenção. Não temos corredores exportadores. O nosso déficit de investimento é de R$ 400 bilhões. Mesmo que todo o pacote do governo (concessões de rodovias, ferrovias e aeroportos) saia do papel, as melhorias só serão sentidas em três ou quatro anos — diz o senador Clésio Andrade (PMDB-MG), presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
Para completar o cenário, a propina é generalizada em toda a cadeia, dizem caminhoneiros. Embora não reconheçam publicamente, as grandes transportadoras já incluem a caixinha de alguns policiais em seus orçamentos. Até mesmo no organizado Porto de Paranaguá — que este ano não sofreu com filas de caminhões — a propina está presente:
— Se não pagar R$ 2 para o cara que abre a lona na hora da triagem da soja, ele a deixa de um modo que acaba fazendo com que ela se rasgue — disse um caminhoneiro que pediu para não ser identificado, lembrando que passam por lá mil caminhões por dia.
— No fim, a gente vende uma saca de 60kg de soja mas o produtor fica só com 35kg, o dinheiro some no caminho — afirma Leonildo Bares, presidente do Sindicato Rural de Sinop (MT).
Fonte: O Globo

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