A Lei dos Caminhoneiros, que determina paradas e regras para melhorar a
qualidade de vida destes profissionais, ainda é um faz de conta no Brasil. Em
vigor desde 15 de março, ela não melhorou a vida dos motoristas, elevou os
fretes e ainda causa muita confusão. O Congresso já prepara uma revisão, mas há
situações de desrespeito que fogem à própria lei. Esta é a realidade que a
equipe do GLOBO constatou ao percorrer 2.450 quilômetros entre Lucas do Rio
Verde (MT) e Paranaguá (PR), a principal rota da soja, como mostra o segundo
dia da série “Celeiro em Xeque”.
A situação mais grave, segundo os
próprios caminhoneiros, é a falta de locais adequados para parada nas estradas.
Em grande parte do Brasil, simplesmente inexistem locais para banho, refeição
ou para dormir com higiene e segurança. E nas rodovias onde há áreas para este
fim o espaço é insuficiente para o crescente número de caminhões. Os motoristas
passam ainda por uma espécie de seleção e, por vezes, são impedidos de
descansar por ordem dos donos dos postos de gasolina.
— Está aumentando o número de
postos que expulsam caminhoneiros. A gente chega, estaciona e logo vem um
segurança perguntando o que a gente vai fazer. Quando a gente fala que vai
tomar banho, dormir um pouco no próprio caminhão, eles falam para a gente sair.
Dizem que faz oito meses, um ano que a gente não abastece ali e que o espaço é
só para quem é cliente frequente. É um absurdo — afirma o motorista Valdecir
dos Santos.
Falta de assistência, apesar de
pedágio
Ele conta que, além de humilhante,
isso coloca em risco a vida dos caminhoneiros, que dirigem com sono ou têm de
parar em acostamentos, sem a menor segurança:— O pior é que isso acontece até
nas grandes estradas, com pedágio. Muitas vezes pagamos mais de R$ 100 numa
única praça de pedágio e não temos assistência alguma — diz Santos.
Daniel Rodrigues de Oliveira,
caminhoneiro de Toledo (PR), confirma o abuso. Ele conta que, em alguns casos,
os seguranças dos postos chegam a ser enérgicos:— Isso é um desrespeito. O
posto não é uma loja que pode escolher clientes. Qual a diferença entre os
caminhoneiros? Talvez eu não tenha abastecido lá ultimamente, mas já abasteci
um dia.
O problema surpreendeu o deputado
Nelson Marquezelli (PTB-SP), que preside no Congresso uma comissão para alterar
a lei. Ele afirmou que pretende tratar desta questão na reforma da lei.
— Os postos nas beiras das
estradas são concessões públicas, não podem escolher quem pode descansar. Vamos
tentar criar uma regra para obrigar as concessionárias de rodovias a criarem locais
de descanso público — afirmou o deputado, que espera enviar o novo projeto de
lei para votação ainda em abril.
Para Amador Trindade Filho, que
deu carona para a equipe do GLOBO, a profissão ainda é muito desrespeitada:
— Às vezes, parece que temos algum tipo de doença, as pessoas não tratam os caminhoneiros com respeito. Trabalho pesado para dar educação para os meus filhos para que eles não sigam a minha profissão, apesar de gostar do que faço, por me permitir conhecer todo o Brasil.
— Às vezes, parece que temos algum tipo de doença, as pessoas não tratam os caminhoneiros com respeito. Trabalho pesado para dar educação para os meus filhos para que eles não sigam a minha profissão, apesar de gostar do que faço, por me permitir conhecer todo o Brasil.
A Associação Brasileira dos
Caminhoneiros (Abcam) reconhece que a lei precisa de muitas mudanças. O
principal pedido coincide com a vontade dos transportadores e usuários de
serviços de transporte: redução do período de descanso diário obrigatório, de
11 para seis ou oito horas, e maior flexibilidade nas paradas. Algumas
empresas, para se adequarem à lei, adotaram o procedimento da parada remota,
quando o motor do caminhão desliga automaticamente após certo tempo rodando na
estrada.
— Há essa situação de parada
remota do caminhão, que não faz o menor sentido. O caminhão desliga quando o
caminhoneiro está há 50 quilômetros de casa, por exemplo. E aí ele tem de ficar
11 horas descansando.
Na avaliação do senador Clésio
Andrade (PMDB-MG), presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o
próprio caminhoneiro não está sendo beneficiado pela lei. Para ele, é
necessário aperfeiçoar a legislação. Glauber Silveira, presidente da Associação
Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), frisa que o governo não preparou
o país para a implementação da lei:
— Tudo está sendo repercutido no frete.
— Tudo está sendo repercutido no frete.
Independentemente das mudanças na
lei, especialistas indicam que o Brasil precisa melhorar o controle de sua
frota, de cerca de três milhões de caminhões. Gustavo Coelho, diretor comercial
da Sascar (empresa que oferece soluções de logística) acredita que, com as
novas tecnologias, pode haver ganhos de custos, minimizando eventuais aumentos
nos gastos com a Lei dos Caminhoneiros:— Grande parte do problema pode ser
resolvido com soluções modernas de monitoramento e gestão. O país perde R$ 2 bi
por ano com roubo de carga e outros R$ 10 bilhões com acidentes.
No vale tudo das estradas,
acidentes e desperdícios
Para o paranense Amador Trindade
Filho, seu trabalho sempre começa ao anoitecer. Mais que uma preferência
pessoal, este caminhoneiro com 12 anos de estrada opta pela noite para o início
da jornada de 2.450 quilômetros de Lucas do Rio Verde (MT) a Paranaguá (PR) por
um motivo simples: fugir do caos das estradas que, durante o dia, ficam entupidas
de caminhões como o dele, também levando a soja ao porto. As viagens são mais
rápidas, mas o risco é sempre maior: em todas presenciou pelo menos um acidente
nas rodovias.
— Saindo à noite ganho quatro,
cinco horas, pois muitos caminhoneiros param para dormir e a estrada fica mais
livre. De dia não há espaço para todos, há filas. À noite a viagem rende mais —
disse Trindade.
Ele escolheu a profissão para
ganhar cerca de R$ 4 mil por mês, o dobro do recebido por motoristas das
cidades.
Trindade poderia viajar sob a luz
do sol e reduzir em 20% os três dias que gasta no trajeto, se as estradas
fossem bem conservadas, com acostamento e até duplicadas. Mas o que ocorre é o
contrário: para passar pelos 20 quilômetros do Anel Viário de Cuiabá, ele gasta
três horas na estrada esburacada. Com acidentes, esse tempo chega a incríveis
nove horas. Apesar de ser um contorno de capital, a situação piorou muito com o
jogo de empurra entre governos. Agora, diz o estado do Mato Grosso, a solução
virá. E, para ser mais rápido, usará o sistema de licitação especial para a
Copa. A promessa é que a estrada fique melhor no fim de 2014.
Estradas do MT matam um ‘Boeing’
por ano
Essa situação, reclamação
recorrente de diversos caminhoneiros, resulta em acidentes e mortes. Trindade
conta que nunca fez uma viagem sem ver um caminhão capotado. No ano passado,
foram 278 mortes no estado, o equivalente a um Boeing lotado. Nos primeiros
meses de 2013, já são 73 vítimas fatais, 20 delas, caminhoneiros. Ele não perde
apenas tempo e corre riscos: também perde dinheiro. Os transportadores lembram
que 15% do frete da soja vão para pneus e manutenção. Se a estrada fosse boa,
esse percentual seria de apenas 3%, média mundial do setor.
Com a infraestrutura precária, o
Brasil perde, apenas com milho e soja, R$ 8 bilhões por ano, segundo estudos da
Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) e de especialistas em
logística — cerca de R$ 6,6 bilhões com a soja e R$ 1,4 bilhão com o milho.
Esse prejuízo equivale a 13% do montante exportado com os dois produtos em
2012. Isso reduz a competitividade das duas lavouras, que representarão 86% da
safra recorde de 184 milhões de toneladas de grãos do país, prevista para este
ano.
— O agronegócio, apesar de
fundamental para o saldo comercial brasileiro, não é prioridade para o governo.
Com estes problemas de transporte perdemos competitividade e, ao mesmo tempo,
temos alimentos caros e pessoas que ainda passam fome no país — afirma Glauber
Silveira, presidente da Aprosoja-Brasil.
Tal prejuízo está ligado
diretamente à escolha dos caminhões como principal meio de transporte de longa
distância. Percorrer as estradas dos quatro estados que estão no caminho do
campo ao porto deixa evidente esse erro. Em muitos trechos, caminhões, cada vez
maiores — já há veículos de nove eixos que levam 50 toneladas de soja — andam
em filas que parecem trens sobre o asfalto.
No fim da viagem, novos
problemas. Dessa vez, nos portos. A falta de investimento e a burocracia levam
a cancelamentos de contratos e desperdícios com esperas e ineficiências.
— Há duas medidas a curto prazo
que podem atenuar o caos logístico. Uma delas é que os portos funcionem 24
horas. A outra é a construção de armazéns. Eles podem ficar prontos em seis a
oito meses e permitiriam que os produtores reduzissem a quantidade de soja
vendida antecipadamente. Com a venda antecipada, o produtor põe na estrada o
grão assim que colhe, aumentando o congestionamento e tornando os caminhões, na
prática, silos sobre rodas — afirma Kátia Abreu, presidente da Confederação
Nacional da Agricultura (CNA).
Propina já entra no orçamento do
frete
Semana passada, o governo federal
determinou que os portos de Santos, Rio, Vitória, Suape, Paranaguá, Rio Grande,
Itajaí e Fortaleza comecem a funcionar ininterruptamente. Mas outros problemas
persistem. Não é incomum navios ficarem dias a fio esperando um local para
atracar nos terminais brasileiros:
— Os problemas estão nas
estradas, armazéns, ferrovias, hidrovias, manutenção. Não temos corredores
exportadores. O nosso déficit de investimento é de R$ 400 bilhões. Mesmo que
todo o pacote do governo (concessões de rodovias, ferrovias e aeroportos) saia
do papel, as melhorias só serão sentidas em três ou quatro anos — diz o senador
Clésio Andrade (PMDB-MG), presidente da Confederação Nacional do Transporte
(CNT).
Para completar o cenário, a
propina é generalizada em toda a cadeia, dizem caminhoneiros. Embora não
reconheçam publicamente, as grandes transportadoras já incluem a caixinha de
alguns policiais em seus orçamentos. Até mesmo no organizado Porto de Paranaguá
— que este ano não sofreu com filas de caminhões — a propina está presente:
— Se não pagar R$ 2 para o cara
que abre a lona na hora da triagem da soja, ele a deixa de um modo que acaba
fazendo com que ela se rasgue — disse um caminhoneiro que pediu para não ser
identificado, lembrando que passam por lá mil caminhões por dia.
— No fim, a gente vende uma saca
de 60kg de soja mas o produtor fica só com 35kg, o dinheiro some no caminho —
afirma Leonildo Bares, presidente do Sindicato Rural de Sinop (MT).
Fonte: O Globo
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