quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Ruralistas querem continuar lucrando com a exploração de motoristas, afirma procurador do trabalho



O argumento deles, em síntese, é o de que a dignidade do motorista, submetido desde longa data a jornadas cruéis, desumanas e degradantes, que chegam a 24 horas de trabalho por dia (nem os escravos de antigamente trabalhavam tanto!), deve esperar um pouco mais para ser reconhecida. Dizem: “sim, é preciso mudar... mas agora não, mais tarde”.
  Rafael de Araújo Gomes, Procurador do Trabalho em Araraquara/SP 
No dia 27 de janeiro de 2013, o jornal Folha de São Paulo publicou em seu caderno “Mercado” uma reportagem de folha inteira com o título “Jornada menor de caminheiro aumenta custo do frete em R$ 28 bi”. A matéria discutia a recente Lei 12.619, que trata da jornada dos caminhoneiros e que exige o gozo de períodos de descanso.
O teor geral da reportagem é o de transmitir ao leitor a ideia de iminente catástrofe nacional criada pela nova lei. Os títulos das subdivisões da reportagem deixam claro tal propósito: “Mais custo” e “Temor de Caos”. Fala-se em “socorro emergencial do governo”, “regulamentação excessiva” e “confusão”.
O núcleo da matéria, que justifica sua manchete, está no seguinte parágrafo:
“Segundo levantamento do Ilos (Instituto de Logística e Supply Chain), a legislação vai elevar o custo do transporte, em média, em 14%, ou R$ 28 bilhões neste ano. Somente com essa mudança, o custo do transporte no país neste ano subirá para R$ 230 bilhões”.
A primeira coisa que chama a atenção na reportagem é o fato do jornal ter se limitado a repetir que o custo adicional criado pela nova lei será, apenas em 2013, de R$ 28 bilhões. Absolutamente nada é dito sobre como se chegou a esse número, ou quais parcelas o compõem. Os impressionantes vinte e oito bilhões correspondem a que, exatamente? Pagamento de horas extras? Contratação de novos motoristas? Compra de novos caminhões? Não é explicado.
Tendo o fato despertado minha curiosidade, localizei a página na internet do mencionado Instituto de Logística, pensando em encontrar cópia do citado “levantamento do Ilos”. Não encontrei. Não está lá. Ou melhor, está, mas não se trata de um estudo, e sim de uma só frase, inserida em um artigo doutrinário.
Consta no artigo “Impacto da Lei 12.619 nos custos do transporte rodoviário de carga”, de autoria de Maurício Lima e datado de 15/10/2012: “É esperado um aumento do custo do transporte rodoviário médio de 21% este ano, sendo 14% proporcionados exclusivamente pelo impacto da nova lei”1. E isso é tudo.
Supõe-se que a Folha de São Paulo possui irrestrita confiança nas informações que lhe são repassadas por esse Instituto, pois a afirmação contida em uma única frase transforma-se em “um levantamento”, não submetido a qualquer conferência ou juízo crítico por parte do jornalista.
A segunda coisa que chama a atenção na reportagem é o fato do jornal reconhecer as jornadas de trabalho suportadas pelos caminhoneiros como normais e, ao menos até o aparecimento da nova lei, legítimas.
Realmente, a Folha informa seus leitores que a jornada ao volante era, “antes da lei”, de em média 14 horas, e que “depois da lei” passou a ser de 8 horas. Além disso, “antes da lei” as horas extras “não existiam”, e “depois da lei” passaram a ser de 2 horas. Por fim, “antes da lei” a hora de descanso era “indeterminada”, e “depois da lei” passou a ser de 11 horas.
Ora, tais informações são completamente falsas. A Lei 12.619 não inventou, agora, a jornada de 8 horas. Tal jornada está na Constituição Federal desde 1988.
A nova lei também não criou o limite de horas extras, a obrigação de pagamento pelas horas extras ou o intervalo mínimo de 11 horas de descanso entre jornadas. Tudo está na CLT há mais de meio século.
Nada disso, portanto, é novidade. Não há “novos custos” envolvidos com a limitação de jornada e gozo de intervalos mínimos intrajornada e interjornadas.
A diferença trazida pela nova lei, a par da proibição à direção ininterrupta por mais de quatro horas, está na criação de formas de fiscalizar e punir o cumprimento desses direitos trabalhistas, que existem há décadas e são descumpridos todos os dias.
Ou seja, o custo trabalhista sempre existiu, mas as empresas do setor, através do descumprimento permanente e sem limites da lei, encontravam formas de não pagá-lo, e mandavam o trabalhador lesado “buscar seus direitos na Justiça”.
Então, ao menos parte do custo de que trata o jornal se refere a custos ilicitamente sonegados através do descumprimento de normas legais que existem há décadas. Trata-se não de “custo novo”, mas de direitos trabalhistas não pagos, de passivo acumulado e escamoteado.
Ora, compreende-se que empresas envolvidas no descumprimento da Constituição Federal e da CLT venham a falar em “caos” e “custos” ao descobrirem que terão que começar a cumprir aquilo que sempre deveriam ter cumprido. Quem está acostumado a obter lucro indevido à custa dos outros e a não ser cobrado por isso irá dizer qualquer coisa. Mas que um jornal como a Folha venha a reproduzir, sem qualquer crítica, a perspectiva indefensável do mau empregador é algo bastante perturbador.
Outros fatos também despertam incredulidade. Não obstante a reportagem e o próprio Instituto de Logística não apresentem detalhes do referido “levantamento”, os resultados da Pesquisa Anual de Serviços (PAS) do IBGE2 revelam que em 2010 (último ao disponível) o setor de transporte rodoviário de cargas gastou com pessoal R$ 16,8 bilhões, incluindo despesas com remuneração, Previdência Social, FGTS e demais contribuições. Ou seja, todas as empresas do setor (que chegam a mais de 90.000), no país inteiro, gastam com pessoal R$ 16,8 bilhões, para um universo de quase 800.000 trabalhadores.
Pois a se crer na reportagem da Folha, em razão das exigências da nova lei relacionadas à limitação de jornada dos motoristas, o setor irá gastar em um ano mais R$ 28 bilhões, ou seja, mais do que toda a sua folha de pagamento com pessoal.
Não é incrível? O setor de transporte rodoviário de carga poderia dobrar seu número de funcionários, e ainda assim o custo adicional não chegaria aos propalados R$ 28 bilhões. Mas corrigir a jornada dos funcionários atuais, diminuindo os excessos, sairia ainda mais caro, se fossemos crer no “levantamento”.
Parece claro que, embora a reportagem se refira ao custo de R$ 28 bilhões como tendo sido criado pela lei trabalhista, estão sendo incluídos na conta despesas que nada têm de trabalhistas, como por exemplo a renovação da frota de caminhões, cuja idade média no Brasil é muito elevada.
Tal tipo de extrapolação é espúria, pois significa transferir à regularização dos problemas trabalhistas parcelas de custo que dizem respeito não ao universo do trabalho, mas a outras ineficiências do setor de transporte rodoviário do país, que são numerosas e bem conhecidas.
Então, como forma de causar comoção em torno da nova lei, e provavelmente como estratégia para desgastá-la aos olhos da opinião pública, adicionasse ao custo da regularização do problema de jornada dos motoristas os custos implicados na eliminação dos demais problemas do setor.
Se o setor de transporte rodoviário de cargas possui problemas graves e estruturais, que proporcionam baixa produtividade na comparação com outros países, ele deve enfrentá-los, é claro, mas sem recorrer à desonestidade intelectual de depositar sobre os trabalhadores, e particularmente sobre a jornada dos trabalhadores, toda a responsabilidade, inclusive por problemas que nada têm de trabalhistas.
O mais importante a respeito da reportagem da Folha e do “levantamento” do Instituto de Logística não está, entretanto, no custo que eles mencionam, de R$ 28 bilhões (que como visto acima não se sustenta), mas sim no custo que não é mencionado, que é esquecido pela reportagem5, mas que está no cerne da questão, que é o custo a toda a sociedade causado pelo elevado número de acidentes no trânsito envolvendo caminhões de carga.
O suposto custo de R$ 28 bilhões de que nos fala a Folha é custo a ser suportado pelos empresários do setor e por empresas que utilizam os serviços de transporte de cargas. E por ser custo a ser registrado na contabilidade das empresas envolvidas, ele “importa” e reclama “socorro emergencial do governo”.
Já o custo aos trabalhadores, ao Estado (União, estados e municípios) e a toda a sociedade proporcionado por mortes, acidentes e adoecimentos, não “importa”, não precisa ser lembrado, pois não será suportado por empresários do setor. Então com relação a ele não há “temor de caos” ou “urgência”, muito embora o custo financeiro envolvido seja multibilionários.
O custo à sociedade nasce da seguinte evidência: a jornada praticada por caminhoneiros no Brasil não é meramente excessiva, mas cruel, degradante e desumana.
Quem defende a persistência de jornadas assim o faz ou por não conhecer os fatos, ou por absoluta insensibilidade moral.
Tive a oportunidade de constatar em primeira mão tal realidade, ao realizar inspeção em parceria com a Polícia Rodoviária Estadual na Rodovia Washington Luiz, uma das principais de São Paulo. Em uma única madrugada, encontramos três caminhoneiros que dirigiam há mais de vinte e quatro horas, tendo parado apenas para almoço e janta, todos envolvidos no transporte de carne vinda de Mato Grosso. Além desses casos, foram encontrados, também, outros motoristas com jornadas de 16, 17 e 18 horas.
Vejam que essas não eram jornadas excepcionais. Tais trabalhadores, segundo suas próprias declarações, praticavam tais jornadas habitualmente, trafegando pelas estradas de todo o país, de norte a sul.
De acordo com estudo elaborado pela Confederação Nacional de Transporte, em 2002, 51,5% dos caminhoneiros trabalham de 13 a 19 horas por dia, 10,4% trabalham mais de 20 horas diárias, sendo que a jornada de trabalho média dos caminhoneiros é de aproximadamente 15 horas.
Imagine agora o leitor o que significa ter que dirigir todos os dias 15 horas ou mais, descansando menos de 6 horas, conduzindo pesados caminhões em meio a tráfego intenso e em péssimas estradas. Coloque-se o leitor no lugar desses motoristas: quantos dias, semanas ou meses você suportaria, dirigindo 15 horas ou mais por dia, todos os dias, sem sucumbir ao sono no volante, sem recorrer a drogas para se manter acordado, sem se envolver em acidentes?
Curiosamente, algumas das mais recentes e vigorosas denúncias das condições de vida e trabalho dos caminhoneiros partiram precisamente da Folha de São Paulo, evidências que foram esquecidas pela reportagem de 27 de janeiro.
Nesse sentido, em abril de 2012 estampava o jornal a manchete:
“Crescimento do agronegócio cria 'escravos da soja' no Brasil: Uma grave epidemia assombra as estradas brasileiras e tem transformado a vida de caminhoneiros e de suas famílias: o uso do rebite, droga estimulante que cria os "supercaminhoneiros". É o que informa reportagem de Agnaldo Brito, cuja íntegra será publicada na Folha desta segunda-feira.
Mas o vício não é causa, é efeito. E esse tem levado ao flagelo uma legião de escravos da soja, o trabalhador rodoviário que se impõe jornadas desumanas de trabalho de 16 a até 24 horas. O crescimento do agronegócio, sobretudo da soja, transformou o país em um dos maiores fornecedores mundiais de alimentos. Deu o Brasil divisas que ajudam a ajustar suas contas, mas o custo humano é alto. ”.
E novamente em novembro de 2012:
“A longa e brutal jornada de um caminhoneiro até um porto no Brasil: Mais
de 1.200 caminhoneiros morreram no ano passado em rodovias federais, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal. Para reduzir o consumo de drogas ao volante e diminuir o número de vítimas, o governo recentemente determinou pela primeira vez um período mínimo de descanso para os caminhoneiros”.
De modo que a realidade dos “escravos da soja” e da “longa e brutal jornada dos caminhoneiros” de meses antes passou, em janeiro de 2013, a ser circunstância normal, a ser tolerada em homenagem aos bilionários (e superdimensionados) custos envolvidos na eliminação desse mal.
Ocorre que trabalhar nas estradas cumprindo jornadas desumanas e brutais conduz, inevitavelmente, a (muitos) acidentes de trânsito e ao adoecimento dos trabalhadores.
Vejamos alguns exemplos concretos:
“SP: Motorista que matou cinco na Anhanguera consumiu cocaína. O tacógrafo do caminhão de (...) revelou também que ele passou 17 horas acordado”
“Naquela semana estava fazendo várias viagens de Foz do Iguaçu a Assunção. Depois de três dias dirigindo direto, dormindo duas horas por dia, apaguei e dormi no volante. A sorte é que fui para o lado do barranco.”
“Você tem que ficar se mexendo, se movimentando, abrindo o vidro, fechando o vidro, molhando o rosto. Dirigindo mesmo, você pega seu galãozinho de água, joga no rosto e ... tenta. Fica falando, fica gritando. Você tem que fazer de tudo para lutar contra o sono. Desviar a atenção. Parar, hoje em dia, não dá para parar mais por causa do rastreador.”
Os números dos acidentes de trânsito no Brasil são assustadores, fazendo do país um dos campeões mundiais de acidentes e mortes nas estradas. No ano de 2009,
o Brasil registrou mais de 400.000 acidentes de trânsito com vítimas9. Em 2010, de acordo com o Ministério da Saúde, 40.610 pessoas morreram em acidentes de trânsito, 8% a mais que no ano anterior, e ocorreram 145.000 internações no SUS por acidentes desse tipo.
Saber mais detalhes (onde ocorreram, que tipo de veículo esteve envolvido, etc.) sobre esses acidentes revela-se tarefa bastante árdua, pois o Denatran não
confecciona relatórios contendo a compilação dos acidentes ocorridos em toda a malha nacional, incluindo rodovias federais, estaduais e municipais. Por esse motivo, levarei em conta, aqui, os dados contidos no Anuário das estradas federais.
De acordo com o Anuário Estatístico das Rodovias Federais 2010, elaborado pelo DNIT e Departamento da Polícia Rodoviária Federal11, ocorreram em 2010 apenas nas estradas federais (excluídas, portanto, as estaduais e municipais) 182.900 acidentes, sendo 7.073 fatais e 62.067 com feridos. Nesses acidentes morreram 8.616 pessoas, e 102.896 ficaram feridas.
Nos 182.900 acidentes ocorridos estiveram envolvidos 317.711 veículos, dentre eles 79.374 veículos de carga. Considerando-se apenas os acidentes fatais ocorridos em estradas federais naquele ano, estiveram envolvidos 11.669 veículos, dos quais 3.343 veículos de carga. Considerando os acidentes com feridos, estiveram envolvidos 99.802, sendo 18.873 deles de carga.
Para melhor compreensão de seu significado, tais números devem ser lidos conjuntamente com as informações sobre a frota de veículos brasileira. De acordo com o Denatran, o Brasil encerrou o ano de 2010 com 64,8 milhões de veículos12. E segundo a ANTT, a frota de veículos usados no transporte de carga é de 2.130.66213.
Isso significa que, muito embora os veículos utilizados no transporte rodoviário de carga correspondam a apenas 3,2% da frota de veículos terrestres do país, eles estão envolvidos em 28,6% das mortes, 18,9% dos acidentes com feridos e 25% do total de acidentes ocorridos em estradas federais.
Não apenas a quantidade de acidentes envolvendo caminhões no transporte de carga é proporcionalmente muito maior que a dos demais veículos, como a letalidade de tais acidentes é extraordinariamente alta, sendo que na maioria dos casos morrem outras pessoas que não o motorista do caminhão, como pedestres e motociclistas.
A causa mais frequente de acidentes envolvendo caminhões é a fadiga, que conduz à falta de atenção, havendo relação direta entre acidentes e as excessivas Nesse sentido, estudo divulgado pela SOS Estradas.com.br aponta que a falta de atenção é a primeira causa de acidentes no país, correspondendo a 35,5% do total, estando em segundo lugar o excesso de velocidade, com 12,7%14.
A Corretora de Seguros Pancary, analisando acidentes com veículos de carga, chegou a idêntica conclusão: “Um motorista dirigindo em velocidade incompatível ao fazer uma curva ... e cansado.” Tal é o motivo predominante dos acidentes mais frequentes e mais graves: tombamentos e capotagens de veículos de carga”.
Cada um desses acidentes, e em particular cada um desses mortos e feridos, dão causa a enormes prejuízos, e não apenas de ordem material. Afinal, como se pode estimar e dar um preço, por exemplo, à dor e ao sentimento de perda experimentado por um filho que perde o pai ou mãe em um acidente nas estradas? Por esse motivo é importante lembrar que as causas de acidentes devem ser sempre combatidas, muito mais em consideração aos reflexos negativos não financeiros de tais ocorrências.
Não obstante, no que diz respeito aos custos envolvidos com os prejuízos materiais a todas as partes envolvidas em acidentes, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em parceria com o Denatran, realizou em 2006 um esclarecedor estudo intitulado “Impactos Sociais e Econômicos dos Acidentes de Trânsito nas Rodovias Brasileiras”.
Em valores atualizados pelo próprio IPEA para julho de 2012, concluiu respeitado Instituto que o custo médio unitário de um acidente com morte em rodovia no Brasil é de aproximadamente R$ 566 mil, envolvendo perda de produção e danos à propriedade17. Já o custo do acidente em rodovia com feridos é de, em média, R$ 116 mil.
O custo total com acidentes de trânsito no Brasil é de 40 bilhões de reais (aproximadamente 1% do PIB nacional).
Com base em tais parâmetros, e nos números do Anuário do DNIT/DPRF acima mencionado, pode-se estimar que o custo dos acidentes com mortos e feridos envolvendo caminhões, apenas em 2010 e excluindo estradas estaduais e municipais, ultrapassou 2,5 bilhões de reais.
Tal valor representa, é claro, apenas uma parte do custo total, pois não leva em conta, por exemplo, rodovias estaduais, dada a carência de compilações estatísticas nacionais. Para se compreender o significado dessa carência, basta mencionar, a título de exemplo, que em 2010 morreram no estado do Paraná18 mais pessoas em acidentes de trânsito nas estradas estaduais (746 pessoas) do que nas federais (721).
Um reflexo menos visível das cruéis jornadas suportadas pelos caminhoneiros (e das drogas consumidas para evitar o sono) é o adoecimento desses profissionais, conduzindo inclusive à morte por doenças cardíacas, mas por se dar ao longo de vários anos, em muitos casos tais patologias não são relacionadas estatisticamente às condições ocupacionais.
Nesse sentido, há estudos científicos realizados com centenas de milhares de pacientes que apontam que o excesso de horas extras pode aumentar em 60% os riscos de doenças cardíacas19, e que o trabalho em horários irregulares e à noite pode levar a problemas cardiovasculares graves (24% mais riscos de doença coronária, 23% mais risco de ataque cardíaco)20. Ora, são justamente essas as condições em que trabalha a maioria dos caminhoneiros, com o agravante de que a atividade é fisicamente desgastante e exige atenção permanente ante o risco de acidentes.
Não surpreenderá, então, que estudos no Brasil tenham indicado a maior frequência de hipertensão entre caminhoneiros: “Dos 60 caminhoneiros entrevistados, 30% estavam com a pressão arterial acima dos valores normais... Não há evidências que associam o trabalho como condutor e a hipertensão, porém destacam-se uma relação entre a idade e tempo de jornada de trabalho como causadores da hipertensão... Em relação ao questionamento sobre já terem dormido no volante, 30% afirmam que já dormiram”.
Tais adoecimentos acarretam, inevitavelmente, outros gastos ao Estado e, dessa forma, a toda a sociedade, pois a maioria dos trabalhadores acabará sendo atendida pelo SUS, a um custo elevado, especialmente através de internações e tratamento farmacológico.
Parece claro que a Lei 12.619 não apenas não criou todos os novos custos trabalhistas que estão sendo imaginados - já que se trata, na verdade, de fazer prevalecer direitos reconhecidos pela legislação há décadas -, como proporcionará expressiva economia ao Estado e a toda a sociedade, sob a forma de redução de gastos de vários bilhões de reais com acidentes nas estradas e adoecimentos de trabalhadores pelo excesso de trabalho.
A polêmica em torno da nova lei traz ecos, em menor escala, do debate que ocorreu no Brasil em torno da abolição da escravatura. O Brasil foi o último país das Américas a proibir tal prática, à época já reconhecida como abominável e moralmente indefensável. Não obstante, resistiu a elite nacional até o último instante, e com sucesso, ao avanço civilizatório, com base em argumentos econômicos relacionados ao aumento dos custos ao comprometimento da produção nacional. Prevaleceu o “pragmatismo” da abolição lenta e gradual. A dignidade da pessoa humana foi mantida, até o último instante, em estado de subordinação aos interesses da elite econômica.
Pois o mesmo tipo de argumento se escuta, agora, sendo proferido contra a lei da jornada dos motoristas, e novamente, como informa a Folha de São Paulo, com o envolvimento dos ruralistas, aliados aos empresários do transporte de cargas.
O argumento deles, em síntese, é o de que a dignidade do motorista, submetido desde longa data a jornadas cruéis, desumanas e degradantes, que chegam a 24 horas de trabalho por dia (nem os escravos de antigamente trabalhavam tanto!), deve esperar um pouco mais para ser reconhecida. Dizem: “sim, é preciso mudar... mas agora não, mais tarde”.
Em última instância, o que está sendo pregado pelos detratores da lei é que se mostra necessário que os motoristas continuem sendo, no dizer da Folha de São Paulo em 2012, os “escravos da soja” para que a soja continue escoando até os portos sem que haja aumento no preço do frete ou prejuízo à elite econômica nacional. Defende-se o indefensável e inaceitável - que motoristas continuem arriscando a vida própria e a vida alheia nas estradas ao cumprir, todos os dias, jornadas exaustivas - em nome da socialização dos prejuízos e da preservação dos lucros privados.
Saberemos em breve, nos próximos dias e semanas, se o lobby do agronegócio pela suspensão da Lei dará resultados. Saberemos, então, se os governantes brasileiros melhoraram um pouco do final do século 19 para cá, ou se continuam enxergando a afirmação da dignidade do ser humano como algo passível de negociação e adiamento.
Fonte: Fetropar

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