O argumento deles, em síntese, é
o de que a dignidade do motorista, submetido desde longa data a jornadas
cruéis, desumanas e degradantes, que chegam a 24 horas de trabalho por dia
(nem os escravos de antigamente trabalhavam tanto!), deve esperar um pouco mais
para ser reconhecida. Dizem: “sim, é preciso mudar... mas agora não, mais
tarde”.
Rafael
de Araújo Gomes, Procurador do Trabalho em Araraquara/SP
No
dia 27 de janeiro de 2013, o jornal Folha de São Paulo publicou em seu caderno
“Mercado” uma reportagem de folha inteira com o título “Jornada menor de
caminheiro aumenta custo do frete em R$ 28 bi”. A matéria discutia a
recente Lei 12.619, que trata da jornada dos caminhoneiros e que exige o
gozo de períodos de descanso.
O
teor geral da reportagem é o de transmitir ao leitor a ideia de
iminente catástrofe nacional criada pela nova lei. Os títulos das
subdivisões da reportagem deixam claro tal propósito: “Mais custo” e “Temor de
Caos”. Fala-se em “socorro emergencial do governo”, “regulamentação excessiva”
e “confusão”.
O
núcleo da matéria, que justifica sua manchete, está no seguinte parágrafo:
“Segundo
levantamento do Ilos (Instituto de Logística e Supply Chain), a legislação vai
elevar o custo do transporte, em média, em 14%, ou R$ 28 bilhões neste ano.
Somente com essa mudança, o custo do transporte no país neste ano subirá para
R$ 230 bilhões”.
A
primeira coisa que chama a atenção na reportagem é o fato do jornal ter se
limitado a repetir que o custo adicional criado pela nova lei será, apenas em 2013,
de R$ 28 bilhões. Absolutamente nada é dito sobre como se chegou a esse número,
ou quais parcelas o compõem. Os impressionantes vinte e oito bilhões
correspondem a que, exatamente? Pagamento de horas extras? Contratação de novos
motoristas? Compra de novos caminhões? Não é explicado.
Tendo
o fato despertado minha curiosidade, localizei a página na internet
do mencionado Instituto de Logística, pensando em encontrar cópia do
citado “levantamento do Ilos”. Não encontrei. Não está lá. Ou melhor, está, mas
não se trata de um estudo, e sim de uma só frase, inserida em um artigo
doutrinário.
Consta
no artigo “Impacto da Lei 12.619 nos custos do transporte rodoviário de
carga”, de autoria de Maurício Lima e datado de 15/10/2012: “É esperado um
aumento do custo do transporte rodoviário médio de 21% este ano, sendo 14%
proporcionados exclusivamente pelo impacto da nova lei”1. E isso é tudo.
Supõe-se
que a Folha de São Paulo possui irrestrita confiança nas informações que
lhe são repassadas por esse Instituto, pois a afirmação contida em uma única
frase transforma-se em “um levantamento”, não submetido a qualquer conferência
ou juízo crítico por parte do jornalista.
A
segunda coisa que chama a atenção na reportagem é o fato do
jornal reconhecer as jornadas de trabalho suportadas pelos caminhoneiros
como normais e, ao menos até o aparecimento da nova lei, legítimas.
Realmente,
a Folha informa seus leitores que a jornada ao volante era, “antes da
lei”, de em média 14 horas, e que “depois da lei” passou a ser de 8 horas. Além
disso, “antes da lei” as horas extras “não existiam”, e “depois da lei”
passaram a ser de 2 horas. Por fim, “antes da lei” a hora de descanso era
“indeterminada”, e “depois da lei” passou a ser de 11 horas.
Ora,
tais informações são completamente falsas. A Lei 12.619 não
inventou, agora, a jornada de 8 horas. Tal jornada está na Constituição
Federal desde 1988.
A
nova lei também não criou o limite de horas extras, a obrigação de pagamento
pelas horas extras ou o intervalo mínimo de 11 horas de descanso entre
jornadas. Tudo está na CLT há mais de meio século.
Nada
disso, portanto, é novidade. Não há “novos custos” envolvidos com
a limitação de jornada e gozo de intervalos mínimos intrajornada e
interjornadas.
A
diferença trazida pela nova lei, a par da proibição à direção ininterrupta por
mais de quatro horas, está na criação de formas de fiscalizar e punir o
cumprimento desses direitos trabalhistas, que existem há décadas e são
descumpridos todos os dias.
Ou
seja, o custo trabalhista sempre existiu, mas as empresas do
setor, através do descumprimento permanente e sem limites da lei,
encontravam formas de não pagá-lo, e mandavam o trabalhador lesado “buscar seus
direitos na Justiça”.
Então,
ao menos parte do custo de que trata o jornal se refere a custos ilicitamente
sonegados através do descumprimento de normas legais que existem há décadas.
Trata-se não de “custo novo”, mas de direitos trabalhistas não pagos, de
passivo acumulado e escamoteado.
Ora,
compreende-se que empresas envolvidas no descumprimento da Constituição
Federal e da CLT venham a falar em “caos” e “custos” ao descobrirem que terão
que começar a cumprir aquilo que sempre deveriam ter cumprido. Quem está
acostumado a obter lucro indevido à custa dos outros e a não ser cobrado por isso
irá dizer qualquer coisa. Mas que um jornal como a Folha venha a reproduzir,
sem qualquer crítica, a perspectiva indefensável do mau empregador é algo
bastante perturbador.
Outros
fatos também despertam incredulidade. Não obstante a reportagem e o
próprio Instituto de Logística não apresentem detalhes do referido
“levantamento”, os resultados da Pesquisa Anual de Serviços (PAS) do IBGE2
revelam que em 2010 (último ao disponível) o setor de transporte rodoviário de
cargas gastou com pessoal R$ 16,8 bilhões, incluindo despesas com remuneração,
Previdência Social, FGTS e demais contribuições. Ou seja, todas as empresas do
setor (que chegam a mais de 90.000), no país inteiro, gastam com pessoal R$
16,8 bilhões, para um universo de quase 800.000 trabalhadores.
Pois
a se crer na reportagem da Folha, em razão das exigências da nova
lei relacionadas à limitação de jornada dos motoristas, o setor irá gastar
em um ano mais R$ 28 bilhões, ou seja, mais do que toda a sua folha de
pagamento com pessoal.
Não
é incrível? O setor de transporte rodoviário de carga poderia dobrar
seu número de funcionários, e ainda assim o custo adicional não chegaria
aos propalados R$ 28 bilhões. Mas corrigir a jornada dos funcionários atuais,
diminuindo os excessos, sairia ainda mais caro, se fossemos crer no
“levantamento”.
Parece
claro que, embora a reportagem se refira ao custo de R$ 28 bilhões como
tendo sido criado pela lei trabalhista, estão sendo incluídos na conta despesas
que nada têm de trabalhistas, como por exemplo a renovação da frota de
caminhões, cuja idade média no Brasil é muito elevada.
Tal
tipo de extrapolação é espúria, pois significa transferir à
regularização dos problemas trabalhistas parcelas de custo que dizem
respeito não ao universo do trabalho, mas a outras ineficiências do setor de
transporte rodoviário do país, que são numerosas e bem conhecidas.
Então,
como forma de causar comoção em torno da nova lei, e provavelmente como
estratégia para desgastá-la aos olhos da opinião pública, adicionasse ao custo
da regularização do problema de jornada dos motoristas os custos implicados na
eliminação dos demais problemas do setor.
Se
o setor de transporte rodoviário de cargas possui problemas graves
e estruturais, que proporcionam baixa produtividade na comparação com
outros países, ele deve enfrentá-los, é claro, mas sem recorrer à desonestidade
intelectual de depositar sobre os trabalhadores, e particularmente sobre a
jornada dos trabalhadores, toda a responsabilidade, inclusive por problemas que
nada têm de trabalhistas.
O
mais importante a respeito da reportagem da Folha e do “levantamento” do
Instituto de Logística não está, entretanto, no custo que eles mencionam, de R$
28 bilhões (que como visto acima não se sustenta), mas sim no custo que não é
mencionado, que é esquecido pela reportagem5, mas que está no cerne da questão,
que é o custo a toda a sociedade causado pelo elevado número de acidentes no
trânsito envolvendo caminhões de carga.
O
suposto custo de R$ 28 bilhões de que nos fala a Folha é custo a
ser suportado pelos empresários do setor e por empresas que utilizam os
serviços de transporte de cargas. E por ser custo a ser registrado na
contabilidade das empresas envolvidas, ele “importa” e reclama “socorro
emergencial do governo”.
Já
o custo aos trabalhadores, ao Estado (União, estados e municípios) e
a toda a sociedade proporcionado por mortes, acidentes e adoecimentos, não
“importa”, não precisa ser lembrado, pois não será suportado por empresários do
setor. Então com relação a ele não há “temor de caos” ou “urgência”, muito
embora o custo financeiro envolvido seja multibilionários.
O
custo à sociedade nasce da seguinte evidência: a jornada praticada
por caminhoneiros no Brasil não é meramente excessiva, mas cruel,
degradante e desumana.
Quem
defende a persistência de jornadas assim o faz ou por não conhecer os fatos, ou
por absoluta insensibilidade moral.
Tive
a oportunidade de constatar em primeira mão tal realidade, ao
realizar inspeção em parceria com a Polícia Rodoviária Estadual na Rodovia
Washington Luiz, uma das principais de São Paulo. Em uma única madrugada,
encontramos três caminhoneiros que dirigiam há mais de vinte e quatro horas,
tendo parado apenas para almoço e janta, todos envolvidos no transporte de
carne vinda de Mato Grosso. Além desses casos, foram encontrados, também,
outros motoristas com jornadas de 16, 17 e 18 horas.
Vejam
que essas não eram jornadas excepcionais. Tais trabalhadores, segundo suas
próprias declarações, praticavam tais jornadas habitualmente,
trafegando pelas estradas de todo o país, de norte a sul.
De
acordo com estudo elaborado pela Confederação Nacional de Transporte, em 2002,
51,5% dos caminhoneiros trabalham de 13 a 19 horas por dia, 10,4% trabalham
mais de 20 horas diárias, sendo que a jornada de trabalho média
dos caminhoneiros é de aproximadamente 15 horas.
Imagine
agora o leitor o que significa ter que dirigir todos os dias 15 horas
ou mais, descansando menos de 6 horas, conduzindo pesados caminhões em
meio a tráfego intenso e em péssimas estradas. Coloque-se o leitor no lugar
desses motoristas: quantos dias, semanas ou meses você suportaria, dirigindo 15
horas ou mais por dia, todos os dias, sem sucumbir ao sono no volante, sem
recorrer a drogas para se manter acordado, sem se envolver em acidentes?
Curiosamente,
algumas das mais recentes e vigorosas denúncias das condições de vida e
trabalho dos caminhoneiros partiram precisamente da Folha de São Paulo,
evidências que foram esquecidas pela reportagem de 27 de janeiro.
Nesse
sentido, em abril de 2012 estampava o jornal a manchete:
“Crescimento
do agronegócio cria 'escravos da soja' no Brasil: Uma grave epidemia
assombra as estradas brasileiras e tem transformado a vida de caminhoneiros e
de suas famílias: o uso do rebite, droga estimulante que cria os
"supercaminhoneiros". É o que informa reportagem de Agnaldo Brito,
cuja íntegra será publicada na Folha desta segunda-feira.
Mas
o vício não é causa, é efeito. E esse tem levado ao flagelo uma legião de
escravos da soja, o trabalhador rodoviário que se impõe jornadas desumanas de
trabalho de 16 a até 24 horas. O crescimento do agronegócio, sobretudo da soja,
transformou o país em um dos maiores fornecedores mundiais de alimentos. Deu o
Brasil divisas que ajudam a ajustar suas contas, mas o custo humano é alto. ”.
E
novamente em novembro de 2012:
“A
longa e brutal jornada de um caminhoneiro até um porto no Brasil: Mais
de
1.200 caminhoneiros morreram no ano passado em rodovias federais, segundo dados
da Polícia Rodoviária Federal. Para reduzir o consumo de drogas ao volante e
diminuir o número de vítimas, o governo recentemente determinou pela primeira
vez um período mínimo de descanso para os caminhoneiros”.
De
modo que a realidade dos “escravos da soja” e da “longa e brutal
jornada dos caminhoneiros” de meses antes passou, em janeiro de 2013, a
ser circunstância normal, a ser tolerada em homenagem aos bilionários (e
superdimensionados) custos envolvidos na eliminação desse mal.
Ocorre
que trabalhar nas estradas cumprindo jornadas desumanas e brutais conduz,
inevitavelmente, a (muitos) acidentes de trânsito e ao adoecimento
dos trabalhadores.
Vejamos
alguns exemplos concretos:
“SP:
Motorista que matou cinco na Anhanguera consumiu cocaína. O tacógrafo do
caminhão de (...) revelou também que ele passou 17 horas acordado”
“Naquela
semana estava fazendo várias viagens de Foz do Iguaçu a Assunção. Depois
de três dias dirigindo direto, dormindo duas horas por dia, apaguei e dormi no
volante. A sorte é que fui para o lado do barranco.”
“Você
tem que ficar se mexendo, se movimentando, abrindo o vidro, fechando o vidro,
molhando o rosto. Dirigindo mesmo, você pega seu galãozinho de água, joga no
rosto e ... tenta. Fica falando, fica gritando. Você tem que fazer de tudo para
lutar contra o sono. Desviar a atenção. Parar, hoje em dia, não dá para parar
mais por causa do rastreador.”
Os
números dos acidentes de trânsito no Brasil são assustadores, fazendo do país
um dos campeões mundiais de acidentes e mortes nas estradas. No ano de 2009,
o
Brasil registrou mais de 400.000 acidentes de trânsito com vítimas9. Em 2010,
de acordo com o Ministério da Saúde, 40.610 pessoas morreram em acidentes de
trânsito, 8% a mais que no ano anterior, e ocorreram 145.000 internações no SUS
por acidentes desse tipo.
Saber
mais detalhes (onde ocorreram, que tipo de veículo esteve envolvido, etc.)
sobre esses acidentes revela-se tarefa bastante árdua, pois o Denatran não
confecciona
relatórios contendo a compilação dos acidentes ocorridos em toda a malha
nacional, incluindo rodovias federais, estaduais e municipais. Por esse motivo,
levarei em conta, aqui, os dados contidos no Anuário das estradas federais.
De
acordo com o Anuário Estatístico das Rodovias Federais 2010,
elaborado pelo DNIT e Departamento da Polícia Rodoviária Federal11,
ocorreram em 2010 apenas nas estradas federais (excluídas, portanto, as
estaduais e municipais) 182.900 acidentes, sendo 7.073 fatais e 62.067 com
feridos. Nesses acidentes morreram 8.616 pessoas, e 102.896 ficaram feridas.
Nos
182.900 acidentes ocorridos estiveram envolvidos 317.711 veículos, dentre
eles 79.374 veículos de carga. Considerando-se apenas os acidentes
fatais ocorridos em estradas federais naquele ano, estiveram envolvidos
11.669 veículos, dos quais 3.343 veículos de carga. Considerando os acidentes
com feridos, estiveram envolvidos 99.802, sendo 18.873 deles de carga.
Para
melhor compreensão de seu significado, tais números devem ser
lidos conjuntamente com as informações sobre a frota de veículos
brasileira. De acordo com o Denatran, o Brasil encerrou o ano de 2010 com 64,8
milhões de veículos12. E segundo a ANTT, a frota de veículos usados no
transporte de carga é de 2.130.66213.
Isso
significa que, muito embora os veículos utilizados no transporte rodoviário de
carga correspondam a apenas 3,2% da frota de veículos terrestres do
país, eles estão envolvidos em 28,6% das mortes, 18,9% dos acidentes com
feridos e 25% do total de acidentes ocorridos em estradas federais.
Não
apenas a quantidade de acidentes envolvendo caminhões no transporte de
carga é proporcionalmente muito maior que a dos demais veículos, como a
letalidade de tais acidentes é extraordinariamente alta, sendo que na maioria
dos casos morrem outras pessoas que não o motorista do caminhão, como pedestres
e motociclistas.
A
causa mais frequente de acidentes envolvendo caminhões é a fadiga,
que conduz à falta de atenção, havendo relação direta entre acidentes e as
excessivas Nesse sentido, estudo divulgado pela SOS Estradas.com.br aponta
que a falta de atenção é a primeira causa de acidentes no país,
correspondendo a 35,5% do total, estando em segundo lugar o excesso de
velocidade, com 12,7%14.
A
Corretora de Seguros Pancary, analisando acidentes com veículos de carga,
chegou a idêntica conclusão: “Um motorista dirigindo em velocidade incompatível
ao fazer uma curva ... e cansado.” Tal é o motivo predominante dos acidentes
mais frequentes e mais graves: tombamentos e capotagens de veículos de carga”.
Cada
um desses acidentes, e em particular cada um desses mortos e feridos, dão causa
a enormes prejuízos, e não apenas de ordem material. Afinal, como se pode
estimar e dar um preço, por exemplo, à dor e ao sentimento de perda experimentado
por um filho que perde o pai ou mãe em um acidente nas estradas? Por esse
motivo é importante lembrar que as causas de acidentes devem ser sempre
combatidas, muito mais em consideração aos reflexos negativos não financeiros
de tais ocorrências.
Não
obstante, no que diz respeito aos custos envolvidos com os
prejuízos materiais a todas as partes envolvidas em acidentes, o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em parceria com o Denatran, realizou em
2006 um esclarecedor estudo intitulado “Impactos Sociais e Econômicos dos
Acidentes de Trânsito nas Rodovias Brasileiras”.
Em
valores atualizados pelo próprio IPEA para julho de 2012,
concluiu respeitado Instituto que o custo médio unitário de um acidente
com morte em rodovia no Brasil é de aproximadamente R$ 566 mil, envolvendo
perda de produção e danos à propriedade17. Já o custo do acidente em rodovia
com feridos é de, em média, R$ 116 mil.
O
custo total com acidentes de trânsito no Brasil é de 40 bilhões de
reais (aproximadamente 1% do PIB nacional).
Com
base em tais parâmetros, e nos números do Anuário do DNIT/DPRF acima
mencionado, pode-se estimar que o custo dos acidentes com mortos e feridos
envolvendo caminhões, apenas em 2010 e excluindo estradas estaduais e
municipais, ultrapassou 2,5 bilhões de reais.
Tal
valor representa, é claro, apenas uma parte do custo total, pois não
leva em conta, por exemplo, rodovias estaduais, dada a carência de
compilações estatísticas nacionais. Para se compreender o significado dessa
carência, basta mencionar, a título de exemplo, que em 2010 morreram no estado
do Paraná18 mais pessoas em acidentes de trânsito nas estradas estaduais (746
pessoas) do que nas federais (721).
Um
reflexo menos visível das cruéis jornadas suportadas pelos caminhoneiros (e das
drogas consumidas para evitar o sono) é o adoecimento desses profissionais,
conduzindo inclusive à morte por doenças cardíacas, mas por se dar ao longo de
vários anos, em muitos casos tais patologias não são relacionadas
estatisticamente às condições ocupacionais.
Nesse
sentido, há estudos científicos realizados com centenas de milhares de
pacientes que apontam que o excesso de horas extras pode aumentar em 60% os
riscos de doenças cardíacas19, e que o trabalho em horários irregulares e à
noite pode levar a problemas cardiovasculares graves (24% mais riscos de doença
coronária, 23% mais risco de ataque cardíaco)20. Ora, são justamente essas as
condições em que trabalha a maioria dos caminhoneiros, com o agravante de que a
atividade é fisicamente desgastante e exige atenção permanente ante o risco de
acidentes.
Não
surpreenderá, então, que estudos no Brasil tenham indicado a
maior frequência de hipertensão entre caminhoneiros: “Dos 60 caminhoneiros
entrevistados, 30% estavam com a pressão arterial acima dos valores normais...
Não há evidências que associam o trabalho como condutor e a hipertensão, porém
destacam-se uma relação entre a idade e tempo de jornada de trabalho como
causadores da hipertensão... Em relação ao questionamento sobre já terem
dormido no volante, 30% afirmam que já dormiram”.
Tais
adoecimentos acarretam, inevitavelmente, outros gastos ao Estado e, dessa
forma, a toda a sociedade, pois a maioria dos trabalhadores acabará
sendo atendida pelo SUS, a um custo elevado, especialmente através de internações
e tratamento farmacológico.
Parece
claro que a Lei 12.619 não apenas não criou todos os novos
custos trabalhistas que estão sendo imaginados - já que se trata, na
verdade, de fazer prevalecer direitos reconhecidos pela legislação há décadas
-, como proporcionará expressiva economia ao Estado e a toda a sociedade, sob a
forma de redução de gastos de vários bilhões de reais com acidentes nas
estradas e adoecimentos de trabalhadores pelo excesso de trabalho.
A
polêmica em torno da nova lei traz ecos, em menor escala, do debate
que ocorreu no Brasil em torno da abolição da escravatura. O Brasil foi o
último país das Américas a proibir tal prática, à época já reconhecida como
abominável e moralmente indefensável. Não obstante, resistiu a elite nacional
até o último instante, e com sucesso, ao avanço civilizatório, com base em
argumentos econômicos relacionados ao aumento dos custos ao comprometimento da
produção nacional. Prevaleceu o “pragmatismo” da abolição lenta e gradual. A
dignidade da pessoa humana foi mantida, até o último instante, em estado de
subordinação aos interesses da elite econômica.
Pois
o mesmo tipo de argumento se escuta, agora, sendo proferido contra a lei
da jornada dos motoristas, e novamente, como informa a Folha de São Paulo, com
o envolvimento dos ruralistas, aliados aos empresários do transporte de cargas.
O
argumento deles, em síntese, é o de que a dignidade do motorista, submetido
desde longa data a jornadas cruéis, desumanas e degradantes, que chegam
a 24 horas de trabalho por dia (nem os escravos de antigamente trabalhavam
tanto!), deve esperar um pouco mais para ser reconhecida. Dizem: “sim, é
preciso mudar... mas agora não, mais tarde”.
Em
última instância, o que está sendo pregado pelos detratores da lei é
que se mostra necessário que os motoristas continuem sendo, no dizer da
Folha de São Paulo em 2012, os “escravos da soja” para que a soja continue
escoando até os portos sem que haja aumento no preço do frete ou prejuízo à
elite econômica nacional. Defende-se o indefensável e inaceitável - que
motoristas continuem arriscando a vida própria e a vida alheia nas estradas ao
cumprir, todos os dias, jornadas exaustivas - em nome da socialização dos
prejuízos e da preservação dos lucros privados.
Saberemos
em breve, nos próximos dias e semanas, se o lobby do agronegócio pela suspensão
da Lei dará resultados. Saberemos, então, se os governantes brasileiros
melhoraram um pouco do final do século 19 para cá, ou se continuam
enxergando a afirmação da dignidade do ser humano como algo passível de
negociação e adiamento.
Fonte: Fetropar
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