No
STF, os votos de quatro ministros encerraram, ontem, o julgamento. No total, só
dois foram contrários
Brasília. A
maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que um feto
com anencefalia é natimorto e, portanto, a interrupção da gravidez nesses casos
não é comparada ao aborto, considerado crime pelo Código Penal. A discussão
iniciada há oito anos no STF foi encerrada ontem após dois dias de julgamento.
Por decisão do Supremo, mulheres que decidem abortar fetos anencéfalos e
médicos que provocam a interrupção da gravidez não cometem crime. A decisão
defendida por oito dos dez ministros que se posicionaram livra as gestantes que
esperam fetos com anencefalia de buscarem autorização da Justiça para antecipar
os partos.
Algumas dessas liminares demoravam meses para serem obtidas. E, em alguns
casos, a mulher não conseguia autorização e acabava, à revelia, levando a
gestação até o fim. Agora, diagnosticada a anencefalia, elas podem ir ao
médicos para a realização do procedimento. A anencefalia é uma má-formação
fetal que resulta da falha de fechamento do tubo neural (a estrutura que dá
origem ao cérebro e à medula espinhal), levando à ausência de cérebro, calota
craniana e couro cabeludo.
O Código Penal, em vigor desde 1940, prevê dois casos para autorização de
aborto legal: quando coloca em risco a saúde da mãe e em caso de gravidez
resultante de estupro. Qualquer mudança dessa lei precisa ser aprovada pelo
Congresso.
Por 8 votos a 2, o STF julgou que o feto anencéfalo não tem vida e, portanto,
não é possível acusar a mulher do crime de aborto. Dos quatro ministros que
votaram ontem - Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar
Peluso -, apenas o último votou contra. Os outros três se somaram aos cinco
proferidos a favor no primeiro dia de julgamento (Marco Aurélio Mello, Rosa
Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia). Na quarta-feira, Ricardo
Lewandowski foi contra a interrupção da gravidez nesses casos. Dias Toffoli
declarou-se impedido de votar por já ter se posicionado a favor quando era da
Advocacia-Geral da União.
Ayres Britto afirmou que gestantes carregam um "natimorto cerebral"
no útero, sem perspectiva de vida. "É preferível arrancar essa plantinha
ainda tenra no chão do útero do que vê-la precipitar no abismo da
sepultura", declarou. A maioria dos ministros reconheceu que a saúde
física e psíquica da grávida de anencéfalo pode ser prejudicada se levar até o
fim a gestação.
Conforme médicos ouvidos na audiência pública realizada pelo STF em 2008, a
gravidez de feto sem cérebro pode provocar complicações à saúde da mãe, como
pressão arterial alta, risco de perda do útero e, em casos extremos, a morte da
mulher. Por isso, ministros disseram que impedir a interrupção da gravidez
seria comparável à tortura.
Gilmar Mendes, favorável à possibilidade de interrupção da gravidez, sugeriu
que o Ministério da Saúde edite normas que regulem os procedimentos a serem
adotados pelos médicos. Uma das propostas é que antes da realização do aborto o
diagnóstico de anencefalia seja atestado em laudos emitidos por dois médicos
diferentes.
Contra
Só dois ministros votaram contra a liberação do aborto - Ricardo Lewandowski e
o presidente do STF, Cezar Peluso. Lewandowski julgou que somente o Congresso
poderia incluir no Código Penal uma terceira exceção ao crime de aborto.
Peluso, para quem esse foi o julgamento mais importante do Supremo, disse que
"o feto portador de anencefalia tem vida".
A ação julgada foi proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde. O relator, Marco Aurélio Mello, acatou a tese de que,
juridicamente, não se trata de aborto, mas de antecipação do parto que coloca
em risco a saúde física e psíquica da gestante.
Ceará
registra 5,3% dos casos de anencefalia do País
Fortaleza. A polêmica sobre se existe ou não
possibilidade de vida para fetos anencéfalos vai perdurar na sociedade
brasileira além do julgamento do STF. Dados do Ministério da Saúde dão conta de
que em 2010, 544 mães brasileiras tiveram a notícia de que esperavam filhos sem
cérebro, calota craniana e couro cabeludo. Desse total, 29 foram no Ceará. Isso
representa 5,33% das ocorrências registradas no País naquele ano.
O número leva em consideração só bebês anencéfalos que chegaram a nascer. Se
forem somados os que morreram ainda no ventre da mãe, o dado sobe para 54 nesse
mesmo ano. Elevando o percentual para quase 10% dos casos em relação aos
registrados no Brasil.
O total do Estado foi informado pela Secretaria de Saúde do Ceará já que o
Ministério da Saúde só possui dados nacionais. Aliás, os registros, alerta o
próprio Ministério, não traduzem a realidade. Os números, aponta, são
subnotificados tanto no País quanto nos Estados. "Principalmente, no
interior, quando a mulher toma conhecimento que espera um filho anencéfalo,
busca logo abortar sem entrar na justiça", informa o órgão.
As que decidem manter a gravidez, mesmo sabendo do problema, muitas vezes se
surpreendem quando o bebê nasce. É o caso da professora Ana Cecília Araújo
Nunes da Silva. Ela deu à luz a Maria Tereza que teve apenas três meses e 28
dias de vida. A criança sofria de anencefalia e Ana teve a "sentença de
morte" da menina aos três meses de gravidez. Quem relembra o drama da
família é a filha mais velha, Ana Karine, de 22 anos. "Meus pais,
missionários do Shalom, moram atualmente no Chile, com meus irmãos mais novos,
mas o período desde o dia que soube até o nascimento e ida de Maria Tereza
nunca sairão de minha mente", lembra.
Segundo ela, a mãe reuniu a família e contou sobre a situação do bebê. Maria
Tereza nasceu no sétimo mês de gestação. "Todos estávamos na maternidade,
inclusive o padre, que batizou o bebê na hora de seu nascimento. A gente não sabia
quanto tempo ela ficaria conosco", diz.
Para surpresa da família e dos médicos, o bebê recebeu alta no 19º dia e foi
para casa. Lá, superou as expectativas: chegou a arrancar a sonda de sua
alimentação, sorriu, ia para o braço dos irmãos e tomou leite de colher, além
de sugar, mesmo de forma fraca, o peito da mãe.
Mesmo após enfrentar o drama de gerar um bebê anencéfalo, Ana Cecília, decidiu
ter outro filho, João Paulo. Ficou grávida aos 39 anos de idade. Hoje, o filho
mais novo tem seis anos e muita saúde. "Não sabemos o que houve no caso da
Maria Tereza, mas não nos arrependemos de cuidar dela enquanto esteve com a
gente", diz Karine.
Assim como no caso da família Araújo, estudos indicam que não há como evitar a
anencefalia. Segundo a neonatologista Maria Juliana Viana, acredita-se que o
diabetes aumente os riscos. "Mulheres com a doença têm sete vezes mais
chances de terem bebês anencéfalos". Para ajudar na prevenção, diz,
especialistas indicam a ingestão de ácido fólico (vitamina do complexo B) antes
e no início da gestação, mas isso não garante a ausência da má formação.
O ginecologista e obstetra Alexandre Calkil Batista, recomenda que o pré-natal
comece antes mesmo da concepção, preferencialmente, três meses antes.
"Assim, a mulher poderá realizar uma consulta médica completa, bem como
todos os exames prévios à gestação". Além disso, se a mulher que deseja
engravidar é obesa, diabética ou hipertensa, é importante realizar um
tratamento prévio com a finalidade de alcançar o controle e o equilíbrio antes
da concepção.
Brasil
ainda tem leis atrasadas, diz advogado
Fortaleza. O julgamento que decidiu pela
legalização da interrupção de gravidez de anencéfalos levou oito anos para
chegar ao fim. A demora, de acordo com o advogado, mestre em Direito pela
Universidade de Coimbra e professor de Direito Constitucional da Universidade
de Fortaleza (Unifor), Jório Martins, foi necessária.
"Temos que levar em consideração que o STF tem em mãos vários casos em que
se discute o direito à vida e eles merecem muito estudo. Inclusive com a
participação do que chamamos ´amigos da corte´ - médicos, biólogos e também
religiosos. O Supremo amadureceu a ideia", defende o professor.
Para ele, se comparado a outros países, o Brasil ainda está muito atrasado no
que se refere a leis que envolvem temas polêmicos, como a utilização de
material genético em pesquisas e a eutanásia, por exemplo.
"Temos muito o que avançar ainda. No caso da eutanásia, por exemplo, o
Conselho Federal de Medicinal editou uma resolução, que foi suspensa. Com um
diagnóstico de doença sem cura ou de estado vegetativo, a pessoa ainda não tem
o direito de ter sua vontade respeitada, mesmo que tenha isso escrito e
registrado", ressalta, acrescentando que "é preciso desmitificar
esses assuntos", frisou.
LÊDA
GONÇALVES e KÉLIA JÁCOME
REPÓRTER/ESPECIAL PARA O NACIONAL